De que serve um iPhone descarregado? ? o caso da remoção dos carregadores

17/01/2023

Muitos usuários da Apple foram surpreendidos em 2020 quando a empresa anunciou que não mais forneceria o carregador junto ao aparelho vendido, agora, o consumidor teria que comprar o carregador separadamente. No entanto, isso é justo?

O aparelho funciona com bateria recarregável e sempre foi comercializado com o carregador, acessório essencial ao regular funcionamento do produto. Por isso, o celular fornecido sem o adaptador, que permite o seu carregamento, se revela imprestável aos fins econômicos a que se destina.

Em 2016, a Apple passou a não mais fornecer os fones de ouvido em seus aparelhos e retirou do seu lançamento da época (iPhone 7) a entrada P1 que dava conectividade ao fone. Ao ser lançado, ficou clara a tentativa da empresa de induzir o consumidor a comprar seu novo produto, os "airpods", a nova geração de fones sem fio da empresa ré.

Em outubro de 2020, a empresa informou que não mais forneceria carregador incluído na venda do aparelho, agora, teria que ser comprado separadamente. No entanto, tal prática, à luz do Código de Defesa do Consumidor, é proibida e conhecida como venda casada.

A venda casada é caracterizada quando um consumidor, ao adquirir um produto, é condicionado à compra de outro, seja da mesma espécie ou não. O intuito da venda casada pode ser visualizado quando o fornecedor de produtos ou serviços condiciona que o consumidor, só pode utilizar o primeiro se adquirir o segundo.

O argumento mais frequente, daqueles que defendem a empresa, é baseado no princípio do livre mercado, segundo o qual a empresa pode colocar o que quiser à venda, e os consumidores, gozando também de sua liberdade, escolhem comprar ou não.

O equívoco é configurado na relação de igualdade falsamente predisposta no raciocínio, partindo da ilusão de que existe uma relação de igualdade entre os polos do ato de consumo. O que na doutrina, lei e jurisprudência, já está pacificado que não há.

É necessário compreender a posição de vulnerabilidade do consumidor em relação a empresas como a Apple. Líder no segmento de celulares no mundo, ela detém sob seu domínio todos os dados dos usuários, senhas, logins, fotos, histórico dos aplicativos, criando uma série de amarras para que o usuário sempre renove o aparelho por outro da mesma marca. Ora, não há o que se falar em igualdade na relação de consumo, quando há uma clara vulnerabilidade técnica, econômica, jurídica e informacional, entre um mero consumidor e a maior empresa de tecnologia do mundo.

A Apple, é a empresa que dita as tendências e influencia outras empresas do setor, não à toa, logo após anunciar que removeria os carregadores, a Samsung também anunciou seguir a principal concorrente. Agora, cabe a pergunta: onde está reservada a liberdade do consumidor? Se as duas maiores empresas do mercado realizam a mesma prática abusiva vedada pela lei.

Prática em que a empresa, ao vender um produto, condiciona a utilidade dele ao consumo de outro. E essa é a principal diferença de quando a Apple retirou dos aparelhos celulares a entrada P1 para fones de ouvido em 2016, de quando ela parou de fornecer carregadores em 2020, veja:

— Airpods: O consumidor pode utilizar o fone de qualquer outra marca, e o usuário pode muito bem utilizar a maioria das funcionalidades do iPhone, sem obter os airpods.

— Adaptador de carregamento: O carregador é um acessório essencial ao uso do smartphone, sem ele, não é possível utiliza-lo por longos períodos,  além da própria empresa recomendar a utilização do carregador Apple para manutenção da segurança e vida útil do iPhone.

A empresa utiliza a justificativa de proteção ao meio ambiente, por deixar de fornecer juntamente com o aparelho o respectivo carregador, diminuindo consideravelmente seus custos e aumentando seus lucros, tornando os consumidores cativos da aquisição de carregadores de forma avulsa.

Configuração da venda casada
O que diz a lei brasileira sobre as práticas da Apple?

Essa é uma prática comercial considerada abusiva pelo Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 39, parágrafo I, que expressamente afirma:

"Artigo 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: (Redação dada pela Lei nº 8.884, de 11.6.1994)

I - Condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos".

Além disso, o CDC em seu artigo 6º, parágrafo IV, resguarda enquanto direito básico do consumidor a sua proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços.

Os mencionados dispositivos legais incidem sobre as práticas comerciais da empresa, em que ela vende o aparelho celular iPhone (bem principal), e condiciona o consumidor a comprar o adaptador de alimentação (bem acessório). De que adianta possuir um iPhone sem os meios de carregamento? Ou melhor, de que serve um iPhone descarregado?

Tratando-se de bem durável e inconsumível, na acepção jurídica do termo (bem que admite a utilização reiterada sem a sua destruição/inutilização), o aparelho celular deve ser fornecido juntamente com o seu carregador, sob pena de impor ônus desproporcional ao consumidor (artigo 39, V, CDC), que adquiriu um produto de alto custo em relação aos seus pares.

Assim, julgando caso semelhante, uma desembargadora do Tribunal de Justiça da Bahia, compreendeu sim pela configuração da venda casada, nas palavras da mesma, veja:

"EMENTA-RECURSO INOMINADO. DIREITO DO CONSUMIDOR. COMPRA E VENDA DE PRODUTO (SMARTPHONE). APARELHO VENDIDO SEM O ADAPTADOR DE ENERGIA/CARREGADOR. NOVA POLÍTICA DA APPLE. VIOLAÇÃO AOS DIREITOS DO CONSUMIDOR. COMPONENTE ESSENCIAL AO FUNCIONAMENTO DO APARELHO CELULAR. PRÁTICA QUE CONFIGURA VENDA CASADA, POR VIA INDIRETA. SENTENÇA DE PRIMEIRO GRAU QUE JULGOU PARCIALMENTE PROCEDENTE PARA CONDENAR AS EMPRESAS RÉS A FORNECEREM O ADAPTADOR DE ENERGIA COMPATÍVEL AO APARELHO ADQUIRIDO. RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO. (Processo nº 0174695- 17.2020.8.05.0001, relatora: doutora ELIENE SIMONE SILVA OLIVEIRA, Data de julgamento: 10 de agosto de 2021)".

Observa-se que o aparelho em discussão não vem com nada que o possibilite ser carregado em uma tomada usual diretamente, o consumidor é condicionado a comprar outro produto (adaptador de carregamento) para carregá-lo. Vender um produto induzindo a compra de outro, para o funcionamento do primeiro, configura inegavelmente a venda casada.

Aos que pensarem em argumentar que o consumidor possui liberdade para utilizar qualquer outro carregador, é importante frisar que a própria Apple condiciona o uso seguro do aparelho à utilização do adaptador de alimentação de sua marca, como bem informa o Manual de Instruções do iPhone, veja:

"Para carregar o iPhone, faça o seguinte:

— Use o cabo de carga (incluído) e um adaptador de alimentação USB da Apple (vendido separadamente) para conectar o Iphone a uma tomada. Consulte adaptadores de carregamento para Iphone".

Importante compreender a relação dos bens reciprocamente considerados, entre o bem jurídico principal e o acessório. O principal é aquele que existe em si próprio, ao passo que o acessório é aquele que sua existência supõe a do principal, conforme aponta o artigo 92 do Código Civil de 2002.

Pablo Stolze Gagliano, conceituado doutrinador dos manuais de Direito Civil, afirma que a relação acima exposta, trata-se da aplicação da máxima do princípio da gravitação jurídica "accessorium sequitur suum principale", em que o bem acessório sempre segue o bem principal. Nas palavras do prestigiado doutrinador Pablo Stolze:

"São bens acessórios as partes integrantes: embora não disciplinadas expressamente pela legislação civil, entendem-se por partes integrantes os bens que, unidos a um principal, formam com ele um todo, sendo desprovido de existência material própria, embora mantenham sua identidade. É o caso, por exemplo, de uma lâmpada em relação a um lustre, pois, mesmo admitindo-se a sua identidade autônoma, carece a lâmpada de qualquer utilidade individual". (Gagliano, Pablo tolze; Pamplona Filho, Rodolfo, Manual de direito civil: volume único / Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona Filho — 5. ed. — São Paulo: Saraiva Educação, 2021).

Dessa forma, fica evidente a venda casada na dependência e integração entre Iphone e carregador, em que perdem a sua funcionalidade quando separados, mesmo que mantidas suas identidades.

Além disso, há em tramitação no congreso nacional, o Projeto de Lei 5451/20, determinando que no comércio de telefonia móvel, o fornecedor inclua bateria, fone de ouvido, fonte de alimentação e quaisquer cabos e adaptadores necessários à fruição do dispositivo.

O deputado Marcelo Ramos (PL-AM), autor do projeto, afirma:

"A opção por não incluir fonte de alimentação na venda de aparelhos de telefonia celular nos parece uma verdadeira afronta ao consumidor brasileiro, uma vez que tal componente se trata de parte essencial ao próprio uso do terminal".

No tocante a isso, ainda em 2020 quando a Apple anunciou esta polêmica mudança, a França continha uma lei que obrigava a empresa a fornecer fones de ouvido e carregadores. Quando veio a mudança, nada mudou para os franceses.

O que pode ser feito para mudar?
Após todos os fatos demonstrados neste artigo, não há dúvidas de que a Apple é abusiva com seus usuários, que, mesmo incomodados, continuam consumindo os produtos da marca, perante as amarras que a empresa possui com os mesmos. Resta ao poder público, e ao Poder Judiciário, aplicar as medidas necessárias, visando a proteção do consumidor, obrigando a Apple a fornecer os carregadores, como também respeitar a legislação nacional que veta suas práticas.  

Dessa forma, o Estado interfere no mercado com a finalidade de equilibrar a balança da relação entre consumidores e grandes marcas, que vivem o paradoxo revelado por George Orwell:

"A massa mantém a marca, a marca mantém a mídia e a mídia controla a massa".

 

Fonte: Revista Consultor Jurídico - Por Paulo Henrique Siqueira