Feminicídios e um sistema de justiça criminal verdadeiramente "dialógico"
O sistema de justiça criminal e a função de persecução penal têm absorvido significativamente, e com razoável eficácia — observado o devido processo legal —, as alterações e mecanismos de modernização para a adequada e emergencial prestação jurisdicional em temas relacionados à violência de gênero.
Longe de um pragmatismo penal, a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006) recebeu, desde sua entrada em vigor, 17 alterações e incrementos, todos necessários a colmatar o desequilíbrio decorrente das diversas formas de violência doméstica e familiar contra a mulher como a violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.
Com efeito, se há muito a avançar em políticas públicas [1] de proteção à mulher no país, não é possível visualizar um absenteísmo legislativo, pelo contrário, esse fenômeno legiferante que interfere na dogmática jurídica é revelado quando se analisa, por uma interpretação axiológica e histórica, 20 anos de vigência da Lei Maria da Penha, o que desvela que algo motivador de comportamentos humanos indesejados emite um sinal de alerta, daí a demanda da sociedade por mais leis — que precisam de efetividade.
Mas se o sistema de justiça e de prestação jurisdicional funcionam de maneira célere — existe uma prioridade entre investigação policial, Ministério Público, serventuários e magistrados — e a maioria das mulheres do país tem seus seus pedidos de medidas protetivas analisados em prazos verdadeiramente razoáveis, por que continuamos a contabilizar mortes de mulheres em razão dessa condição de gênero?
Em 2021, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 1.319 [2] mulheres foram vítimas de feminicídio no país. Segunda o Ipea, no Atlas da Violência, 3.737 mulheres foram assassinadas no Brasil em 2019, número abaixo de 2018 que contabilizou 4.519 homicídios femininos (não apenas feminicídios), o que exige uma aproximação nesses cálculos, porquanto a qualificadora do homicídio denominada feminicídio foi incluída no Código Penal somente em 2015 (Lei nº 13.104/2015) e — absurdamente — as informações ainda não são incluídas em todos os bancos de dados.
E, a pergunta deste singelo texto ao cientista jurídico e aos agentes públicos e à sociedade é bem simples. Se o sistema de justiça está funcionando, como explicar tantas mortes por feminicídio? E os órfãos do feminicídio [3] que, afastados levantamentos regionais, não se sabe onde estão ou quantos são? Na região de Presidente Prudente (SP) são 57.
Em primeiro lugar existem falsas percepções sociais, por vezes com uma carga de impotência dos juristas, acerca dos problemas presentes na sociedade que precisam ser enfrentados no processo penal, e de maneira interdisciplinar e transversal com os demais ramos do direito e das ciências — não apenas sociais.
Em um estudo levado a efeito pela Polícia Civil de Presidente Prudente que acaba de ser publicado, verificou-se que 81,58% [4] das vítimas de feminicídio analisadas não dispunham de medidas protetivas de urgência o que, a contrario sensu, revela que mulheres que conseguem iniciar o rompimento do ciclo de violência doméstica têm mais chances de sobreviver. Note-se, ademais, que somente naquela região de Presidente Prudente, em 2022, foram registrados aproximadamente 4.447 [5] casos de violência doméstica contra a mulher e cumpridas pela PC-SP 3.490 medidas protetivas de urgência.
A pesquisa ainda revelou que 75% dos feminicídios ocorreram em finais de semana, com uma maior tendência na madrugada de domingo para segunda-feira e que naquela região, 10 dos 38 agressores, ou 26,31% dos homens cometeram suicído na sequência, o que além de reafirmar a tragédia familiar e humanitária, traz a reflexão sobre a falência pela busca exclusiva da pena privativa de liberdade como simples solução para o comportamento humano indesejado, traduzido aqui como decorrência de problemas sociais, de saúde e segurança pública, que aflige nossa sociedade pós pandemia.
Importante série de pesquisas produzidas pelo instituto Patrícia Galvão revelou que 93% dos entrevistados apontam que em briga de marido e mulher todos devem meter a colher, o que reafirma que mais pessoas e alternativas podem auxiliar o rompimento do ciclo de violência, como a premência da expansão das casas de acolhimento e do aluguel social, conforme a oportuna Lei nº 17.626/2023, sancionada pelo governo paulista.
A solução, por evidente, não é exclusivamente do sistema jurídico que, no entanto, pode contribuir com medidas dialógicas, interdisciplinares, o que perpassa também no difícil debate sobre conservadorismo, machismo estrutural, tratamento e na própria cultura de banalidade do mal, quando o tema é violência contra as mulheres brasileiras, cujos fatores podem ser compreendidos e modulados pela ciência jurídica, seja como fator de mediação ou de imposição. Não podemos esquecer das medidas restaurativas e pedagógicas, em especial com foco na juventude — futuro geracional familiar.
Hannah Arendt aprofunda o conceito de banalidade do mal e ressalta que a massificação da sociedade é suficiente para criar uma multidão incapaz. É possível que as traves na visão funcionem atualmente como muletas de justificação da violência contra a mulher em que, como os atores de tempos sombrios, todos estamos submetidos a um establishment, enquanto fagulhas de iluminação não se unem ou dialogam em busca de um ideal comum nacional.
Por semelhança, na região de Presidente Prudente há um pico de feminicídio envolvendo mulheres de 41 a 45 anos, aumento sem justificativa, possivelmente conectados a homens (doentes), que cumprem ordens, da voz da massificação, sem questionar, no exato momento de transição e libertação dessas mulheres.
O certo é que não existe uma solução pronta, acabada, de maneira que com a expansão dos mecanismos dialógicos do sistema de justiça criminal, mais opções para o rompimento do ciclo de violência, o que vai ao encontro das disposições do artigo 9º da Lei nº 11.340/2006, ao determinar que a assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar será prestada de forma articulada (G.N.) e conforme os princípios e as diretrizes previstos na Lei Orgânica da Assistência Social, no Sistema Único de Saúde, no Sistema ùnico de Segurança Pública, entre outras normas e políticas de proteção.
E esse custo da violência doméstica inclui, dentre outros:
Custo social - órfãos do feminicídio
Custo econômico - ressarcimento de gastos com tratamento médico
Custo geracional - impacto no patrimônio geracional familiar
E, assim como na criminalidade organizada e nos crimes empresariais, o aspecto econômico pode contribuir na repressão da violência doméstica. Em tempos de anormalidade, analisando a Lei Maria da Penha, extrai-se do artigo 9º, §4º, incluído pela Lei nº 13.871, de 17 de setembro de 2019, a possibilidade de medida de repressão financeira, ainda não rotineira nas investigações criminais, ao dispor que:
aquele que, por ação ou omissão, causar lesão, violência física, sexual ou psicológica e dano moral ou patrimonial a mulher fica obrigado a ressarcir todos os danos causados, inclusive ressarcir ao Sistema Único de Saúde (SUS), de acordo com a tabela SUS, os custos relativos aos serviços de saúde prestados para o total tratamento das vítimas em situação de violência doméstica e familiar, recolhidos os recursos assim arrecadados ao Fundo de Saúde do ente federado responsável pelas unidades de saúde que prestarem os serviços.
Considerando que a maioria dos casos são subnotificados ou a mulher não revela as verdadeiras causas durante o atendimento médico — informações que surgem apenas no bojo da persecução penal —, decorre daí um poder-dever de a investigação criminal (dialógica) a suprir essa lacuna, com consequente provocação, via notificação, pelo que denominamos FCCVD (Formulário de Comunicação de Custos da Violência Doméstica), ao SUS, às Secretarias de Saúde dos Entes Municipais e Estaduais, assim como à União, às Cortes de Contas, Fazendas Públicas e Procuradorias de Estado, dos entes responsáveis pela financiamento público de saúde.
Obviamente, a conclusão não é linear, de maneira a cotejar o efetivo pagamento com a realidade familiar, para não importar ônus de qualquer natureza ao patrimônio da mulher e dos seus dependentes.
O dispositivo, quando aplicado, não enseja em atenuante ou na possibilidade de substituição da pena aplicada, conforme disciplina o §6º do artigo 9º da Lei nº 11.340/2006. Uma alternativa a mais a barrar a barbárie.
Importante recordar, ademais, a proibição de aplicação do Acordo de Não Persecução Penal nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor, nos termos do artigo 28-A, §2º, inciso IV, do Código de Processo Penal, Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019.
Outras medidas dialógicas, de responsabilidade da persecução são necessárias, como o encaminhamento do agressor a programas de reeducação e recuperação e atendimento psicossocial, com uma leitura de justiça restaurativa, (artigo 22, incisos VI e VII); notificação da ocorrência à instituição responsável pela concessão do registro ou da emissão do porte de armas (artigo 12, inciso VI-A, da Lei 11.340/2006, disposição incluída pela Lei nº 13.880/2019), dentre outros instrumentos que necessitam ser manejados pela investigação criminal.
Embora a investigação criminal e o sistema de justiça encontrem seus contornos na Constituição e na legislação ordinária, uma análise sistemática impõe a adoção imediata, enquanto persistir esse estado extraordinário de graves violações aos direitos humanos no país (feminicídios), de reflexão sobre o conteúdo de letras de músicas ou de publicações que disseminam o ódio contra a mulher. Longe de constituir controle ou censura prévia, o estudo prudentino identificou pelo menos cinco músicas no país cujos textos, na linha das propostas nazistas ou de absurda discriminação racial, determinam a segregação, a agressão ou a morte de mulheres, o que nem de longe constitui liberdade de expressão, com a possibilidade de associações ou entidades de proteção de direitos das mulheres encamparem imediatamente essa bandeira.
Considerando que as funções da investigação criminal dialógica extrapolam a aspectos humanitários, sociais, culturais e econômicos, as ações exemplificativas elencadas constituem simples medidas de urgência, como voz no deserto que pretende o desvelar o véu de la Catrina, de José Guadalupe Posada, o ilustrador da morte e de seu principal incentivador, Diego Rivera, em busca de identificar e acolher os órfãos dessa criminalidade e de estancar os feminicídios, e as veias que sob o viés da indiferença, continuam abertas e expondo famílias de todo o país.
A proposta. Um pacto nacional, com envolvimento da comunidade jurídica e sociedade para a discussão deste tema, a revolver questões sensíveis, culturais, religiosas em amplo debate despido de soluções prontas, mas com um olhar que mire o futuro, quem sabe no otimista 8 de março de 2030 (dia internacional da mulher), com menos feminicídios e impactos familiares geracionais irreparáveis.
Enquanto isso, comemoremos o 8 de março, mas cientes de que mulheres brasileiras estão sangrando diariamente, sob o véu da indiferença e da maldade do não pensar.